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Lições de meu pai

Foi-me dada a honrosa oportunidade de escrever algumas palavras sobre meu pai, Sergio Checchia. Creio que grande parte dos leitores deste jornal conhece sua vida acadêmica e profissional há mais tempo e, provavelmente, em mais detalhes do que eu. Por isso, decidi focar em aspectos um pouco mais pessoais e gostaria de compartilhar alguns ensinamentos que ele me passou. Para não ser muito longo, escolhi três.

Ao escrever este texto, percebi que meu pai me ensinava a ser ortopedista há muito mais tempo do que inicialmente imaginava. Lembro bem de uma época (eu devia ter uns nove anos de idade) quando costumávamos fazer duas brincadeiras nas manhãs de sábado. A primeira era montar Lego. Eu era um desastre, extremamente estabanado e sem paciência para encaixar as pecinhas. Meu pai, porém, calmamente reforçava que eu deveria movimentar minhas mãos com delicadeza e paciência: “imagina só o estrago que faria com um bisturi na mão”, dizia ele. A outra brincadeira era assistir aos “vídeos das nuvenzinhas e ossinhos”. Sim, nos sábados de manhã, lá em 1994/1995, assistíamos vídeos em VHS de artroscopias de ombro. Não sabia que as nuvenzinhas eram a bursa subacromial, nem que o ossinho era o acrômio... Se bobear, nem sabia que se tratava de um ombro! Mas o fato é que eu gostava, me divertia, pois o meu pai estava se divertindo e eu estava ao lado dele. Era o que importava. Desta maneira (e de muitas outras que aqui não cabem), creio que a primeira lição que ele me deu, sem que notássemos, é que para se ter sucesso na carreira (além de muita sorte e dedicação), devemos tentar viver sem a famigerada dicotomia entre “vida pessoal” e “vida profissional”. Pelo contrário, me mostrava que era possível trabalhar brincando e se divertir trabalhando.

O segundo aprendizado que me vem à mente (e que inicialmente me parecia ser conflitante com o primeiro), comecei a vivenciar desde a primeira vez que o acompanhei ao centro cirúrgico. Eu ainda estava na faculdade, provavelmente no terceiro ano, e fui como observador. Me lembro de pouca coisa, mas um fato me impressionou: como ele era bravo durante as cirurgias (obs.: entre duas delas, um R4 me estimulou a voltar mais vezes, pois achou que ele estava mais calmo naquele dia! Haha). Quase sempre ficava extremamente irritado quando os outros não agiam conforme ele esperava (só durante a cirurgia, pois assim que acabava, voltava ao “normal”)! Nunca tinha visto este lado dele... Demorei bastante para entender o porquê. A ficha só começou a cair para mim anos depois, após meu R4, quando comecei a auxiliá-lo. Notei que ele se importava com dezenas (talvez centenas) de detalhes de uma cirurgia, muito antes dela começar. Como exemplo: até hoje, em todas as cirurgias, após o término da indução anestésica, demoramos de 45 a 60 minutos até a incisão. O motivo é que fazemos questão de pessoalmente posicionar o paciente, colocar os coxins necessários, fixar sua cabeça, higienizar a câmera artroscópica, degermar o membro, controlar a temperatura do ar-condicionado, colocar a manta térmica etc. Parece obsessivo, mas faz sentido ao ouvir o que ele não se cansava de repetir: “Uma cirurgia é como pilotar um avião, basta uma falha entre centenas de variáveis para que o avião caia”. Ser extremamente rígido com os auxiliares e se preocupar mesmo com os mínimos detalhes eram duas das formas que meu pai tinha de tentar controlar o ambiente cirúrgico e suas centenas de variáveis. E o motivo de tudo isso é o temor que ele tem de complicações cirúrgicas... Portanto, o segundo ensinamento (e sem dúvida o maior) foi esse: “O primeiro e mais importante objetivo de um cirurgião deve ser o de minimizar complicações!”, (e aqui eu complemento: “nem que, para isso, ele tenha que dar várias broncas ou se preocupar com a marca/espessura do plástico da capa do artroscópio!” – acho que essa só ele e o Hélio Leal vão entender).

Foi muito interessante, porém, quando notei que mesmo temendo complicações e sendo extremamente metódico, raramente meu pai operava dois casos iguais da mesma maneira. Parece lógico que seu lema seria “em time que está ganhando, não se mexe!”. Entretanto, é notável que sempre esteve disposto a fazer mudanças (de pequenas a grandes), buscando se aperfeiçoar e otimizar os resultados. Nunca se opôs a aprender técnicas novas (e utilizá-las quando as julgasse vantajosas e seguras) e muito menos a abandonar técnicas mais antigas (estou até com saudades de um reparo de lesão de Bankart ou de uma prótese reversa sem enxerto/lateralização na glenóide...). Até hoje converso com colegas em congressos que falam que operam de um jeito ou de outro, pois assim aprenderam com meu pai... Com frequência, porém, já faz tempo que meu pai não opera mais daquela maneira... Portanto, acho que a terceira lição é quase que um lema que me parece sumarizar como ele encarou os desafios técnicos de um cirurgião: “Quem não busca evoluir, com o tempo involui”.

Por fim, agora te escrevo diretamente, pai. Quero dizer que estou ao mesmo tempo muito triste e muito feliz. Estou muito triste porque, ao revisar este texto, constatei que escolhi (sem nem perceber) o “pretérito” como tempo verbal majoritário… (“operava”, “ensinava”, “ficava”). Só agora está caindo a ficha de que, em duas semanas, vai se aposentar (já estou com saudades das nossas 2as, 3as e 4as feiras trabalhando juntos!). Da mesma maneira, fico muito feliz que está tendo a oportunidade de terminar a profissão “nos seus termos” e tendo a clareza para assim decidir! Parabéns por tudo! E muitíííííssimo obrigado! Te amo!

Caio Checchia,

16 de junho de 2022.